quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O último sentimento

Cinco de outubro. Hoje esse exemplo de avó, mãe, tia, madrinha e mulher completa 78 anos. Cada fio de cabelo branco que enfeita a cabeça dessa figura memorável esconde no seu comprimento o peso de uma vida inteira de risos e choros. Essa guerreira, que desbravou épocas e derrubou estereótipos arraigados na cultura de um tempo em que poucos pensavam em questionar os paradigmas vigentes, hoje, olha para trás e vê o rastro exemplar que configura o seu caminho. Certamente, essa é uma sensação inimaginável.


Atualmente, Dona Marta mora sozinha. Seu marido faleceu há nove anos. Seus seis filhos seguiram trajetórias independentes e apenas nos feriados Dona Marta é agraciada com a presença de todos em casa. Seus dez netos completam o orgulho e a satisfação em reunir a família inteira. Nessa data, não poderia ser diferente. A anfitriã está com a casa cheia. Apenas um neto estava ausente naquele dia. Por estudar e trabalhar fora, tornou-se impossível se juntar ao grupo.

Aquele dia, considerado por Dona Marta o mais feliz de sua vida, começou de forma intensa. Às seis da manhã a aniversariante já havia levantado e a água do café já começara ferver. Os filhos foram levantando aos poucos, sendo que às oito da manhã todos já estavam de pé. Cada um se incumbiu de comprar algo no mercado para incrementar a festa de logo mais. Os netos, às nove e meia da manhã, saíram para brincar no clube. Novamente, Dona Marta estava sozinha em casa. Os telefonemas começaram a chegar cedo. Telegramas também foram muitos. Entretanto, uma ligação era aguardada de modo especial: a do neto que não pôde chegar a tempo de festejar com os demais.

A 380 km de distância, Júlio, às nove e quarenta e cinco da manhã, pegou o telefone para felicitar a avó que tanto estimava. Dona Marta, naquele momento, tratava das galinhas que criava no seu imenso quintal. Ao ouvir o telefone tocar, saiu em disparada a fim de não perder a ligação que chegava. O que ela não contava no meio de seu caminho era com um tapete escorregadio posicionado bem antes da escada que dava acesso à sala onde ficava o telefone. Bastou que Dona Marta pisasse naquele pedaço de pano com o mínimo de pressa para que seu pescoço fosse imediatamente de encontro à quina da escada de apenas quatro degraus. Não houve tempo nem para agonizar. Foi um acidente fatal.

Às dez da manhã, dois dos seus seis filhos chegaram em casa e se depararam com aquela cena deprimente. Não havia mais o que fazer. Às duas da tarde teve início o velório. Júlio recebeu a ligação dos seus pais por volta de meio dia e veio rapidamente para a sua cidade natal. Em meio àquele clima de tristeza profunda, o neto inconformado ainda buscava explicações sobre como aquela tragédia poderia ter acontecido. Seu pai, em estado de choque, lhe explicou minuciosamente todo o ocorrido. O enterro seria às seis da tarde. Júlio se recusou a ir, alegando que precisava ficar em casa para refletir.

A família, quase completa, em pleno estado de luto caminhou laboriosamente até o cemitério. Foi uma despedida dolorosa, que parentes e amigos jamais esqueceriam. No entanto, os contratempos daquele dia ainda não haviam terminado. Quando todos chegaram em casa, se depararam com mais uma surpresa, diga-se de passagem, nem um pouco satisfatória. Júlio havia se suicidado e deixado bem ao lado do telefone um bilhete com o seguinte escrito: remorso.

Um comentário:

Agridoce disse...

Pensei que eu ai tirar a teia de aranha prmeiro... rs

Mas que medo dessa historia... muito mórbida!!! Mas muito bem escrita tb!!! Adorei..
Abração!!!